devolve um passado congelado
sobre "o rosto é uma máquina aquosa", de Ana Maria Vasconcelos, que logo sai em segunda edição pela Ofícios Terrestres. O livro foi semifinalista do Oceanos-2024.
Destacam-se abaixo alguns agrupamentos temáticos em que poderíamos separar os poemas desse livro. Não são estanques, mas podem nos municiar de alguns enlaçamentos, alguns focos de luz.
Em primeiro lugar, não hierarquicamente, há os poemas que prenunciam uma catástrofe, ou seu relance. Este tom pode se recobrir de uma temporalidade passada ou futura: “[...] não chame o acidente | não chame o acidente | os poemas só respiram | na altura dos destroços [...] | um vidro inteiro uma plateia atenta | o avião vai decolar”. Mais à frente, o agouro a vir (e no fim algo ruim sempre acontece, como uma explosão da realidade, dizia Roberto Bolaño) torna-se dor cauterizada, algo entre o susto fossilizado e o outro mundo, de projeção remota, antiquíssima: “entre os dedos comemoro | que exista a palavra terra | tão bonita | quanto os teus cabelos | depois do afogamento”.
Poemas-presságios, em jogos concêntricos, como peixes entre os cristais, como as lentas lagunas de um tarô noturno que as imagens das barcaças atravessam, rasas, sob os luares espelhados. Isto estrutura uma organização possível deste livro curto e interminável, delicado e – é fato – assombroso. Também no poema-presságio, às vezes perde medula a própria força do ominoso: como se diz no diálogo com Victor Heringer (poema 36), o fim do mundo terá sido sem graça. Pela lógica deste livro, este vaticínio final faz muito sentido: se tudo desaparecerá, inclusive as baratas, é o espetáculo do apocalipse apenas uma frágil constelação, até tediosa, cujo fulgor fará ondear, serenamente, as águas paradas do próprio estertor.
Como uma alegoria, há o bloco temático dos poemas sobre o cigarro (os há sobre os ossos, sobre os espelhos, sobre o vento, sobre as ruínas etc). O eu poético que fuma, soprando luzes “no aço da janela,” conecta-se ao etéreo; ser foco de luz é soltar-se, saltar, desintegrar-se, livrar-se: no vendaval, foge-se do memento mori, a todo tempo convocado pelos poemas de O rosto é uma máquina aquosa. No décimo nono poema, uma outra carta sobre o cigarro: ali se divisam os estranhos vultos que, nas páginas de Ana Maria Vasconcelos escapam; são fantasmas, são reminiscências, são fotogramas-vultos, e ocultos (“e a máscara da patinadora é de fumaça”), que aparecem de súbito, feito assovios numa feira vazia. Fumaça e poemas, cigarro e poesia: no cismar sozinho à noite, o feixe de fumaça metaforiza não só os revoos e a espiritualização da palavra, mas uma reflexão sedimentada sobre o fazer poético, sobre os trabalhos e os dias da palavra-presa, da palavra-lâmina. Os poemas-trabalho são uma terceira divisão cabível (haverá muitas outras) desta obra de Ana Maria Vasconcelos.
Poderia seguir assim por muito tempo, em direção às Terras da Curiosidade. Mas interrompo esta breve reflexão posicionando em luz um quarto eixo temático. Os poemas-portais. O tempo todo este livro nos indica passagens secretas de onde irrompe algum estremecimento, alguma força inaudita; os mapinhas do pescoço sob os lóbulos, o campo-de-força que traçam as havaianas sobre a areia, protegendo o eu-lírico e seu amor: ali, o jogo de búzios, a espectralização benfazeja, a inscrição sobre um templo de outro mundo (porque este livro também é do mundo dos mortos, ao qual viaja): “ninguém mexe no que está trancado”. Com seu amor, a voz poética muda de território alegremente; passa a acumular livros; vê o que foi e o que será, e prefere permanecer.
Seria necessário muito ainda a dizer. Ressalto o apuro e o extremo cuidado poético da autora para com os grafismos e as sonoridades: “o salto imóvel | a vida é o entrave | que levita do vidro”. Veja-se que a aliteração das dentais-líquidas (entrave/vidro) ilustra fantasmaticamente a imagem refratada na superfície de reflexo.
Profunda é a minha admiração pela poesia de Ana Maria Vasconcelos e segunda edição deste livro será sempre lembrança feliz para a vida desta editora, que, dure quanto durar, terá visto, cristalizada nestas versificações, a eterna força do seu encanto.